#Especial_Halloween: Contos de Terror


Para esta semana em que comemoramos o Dia das Bruxas criamos uma programação especial de postagens aqui no Garotos Digitais. Confira agora o conto Neve Na Sombra Da Noite do escritor Everton Medrado, pois nada é melhor que uma boa e clássica história de terror para fazer um Halloween legal.

 

unnamedSobre o autor:
Everton Medrado é um autor dinâmico, capaz de levar seus leitores a paisagens construídas dentro de uma riqueza imensurável de detalhes. Através de uma linguagem simples, suja, e muitas vezes perversa, envolve suas tramas em sentimentos violentos de insanidade e ruptura do correto. Trata seus heróis como vilões, e o horrível como o belo. Atualmente está trabalhando no livro O Bastante Para Não Sermos Anjos

Confira outros trabalhos do autor.

 

 

NEVE NA SOMBRA DA NOITE

Entre os passos dos homens e dos deuses sempre houve o repúdio de ambos os ódios. Matar era para ele a concepção final daquilo que chamamos de sobreviver, daquilo que chamamos de razão crucial e todo o seu significado. Esta história conta sobre um homem sozinho, isolado em uma pequena cabana no frio do vale das grandes montanhas.

 

Naquela noite dirigíamos a viatura em direção à ponte principal do vilarejo, que ameaçava se romper devido ao acúmulo de neve no rigoroso inverno. Aquele era um lugar pequeno, com poucos registros policiais, e uma ridícula média de duas notas de óbito por ano. Era preciso interromper a passagem e assegurar os moradores de que estariam seguros assim que todo o gelo fosse retirado.

 

– Tem feito tanto frio que não entendo como meu mijo não se congelou na privada hoje de manhã. Como vai o resfriado da sua filha? – perguntou-me Castelari.

 

– Péssimo, devemos levá-la para fora daqui quando a ponte for liberada, e só assim a minha sogra vai parar de me lembrar disso.

 

– Olha aquilo… – disse ele me apontando um carro abandonado com uma porta aberta na estrada.

 

– Vamos dar uma olhada.

 

Estacionamos o carro de polícia próximo ao jipe escuro, nossas botas se afundavam na neve do acostamento, e o clima ali estava tão congelante que nem mesmo um homem adulto aguentaria passar algumas horas sem congelar. Os faróis da viatura iluminavam o carro abandonado, ele ainda estava com o motor quente, seus pneus estavam enrolados em correntes para que não derrapasse, mas o detalhe bizarro da cena era um enorme buraco de tiro que destruíra o para-brisa.

 

– Um tiro de espingarda? – cogitei.

 

– Provavelmente calibre .16, talvez até mesmo .14.

 

Seja lá quem tivesse usado aquilo tinha um bom gosto para armas e, principalmente, uma boa mira no escuro. A noite era tão densa que ver os flocos de neve caírem só era possível com a iluminação da viatura.

 

– Castelari, volte para o carro e traga o rifle e a lanterna, pode ser que este sujeito ainda esteja por perto, não se esqueça de fazer contato pelo rádio.

 

Toda a cena não me parecia um assalto simples; com exceção ao sangue no banco do motorista o interior do carro parecia intacto, com a chave na ignição e uma mochila no banco de trás. Havia pequenos rastros vermelhos e pegadas que levavam até as árvores. Era possível pensar que o sujeito ergueu a vítima com os próprios braços e tentou esconder as gotas de sangue com neve espalhada.

 

– Quem mora naquela direção? – perguntou-me Castelari me entregando o rifle.

– O velho Burdock, acha que o caipira tem algo a ver com isso?

– É o que parece, tentou contato com o rádio?

– Sim. Mas as linhas estão péssimas por causa da neve.

 

Burdock era o coveiro do único cemitério da vila, morava isolado em uma antiga cabana que significava tudo o que a família havia deixado. Um homem silencioso, o típico esquisito da vizinhança, trocava poucas palavras e não bebia aos finais de semana. Parecia-me sempre preocupado e irritado, um velho do interior. Até então não havia tido problemas sérios com a polícia, com exceção a uma vez que fora pego observando o banho da filha de um comerciante pela janela durante a noite. Naquela época o caso foi deixado de lado, mas havia algo que me incomodava naquele homem além da sua má fama; talvez minha cabeça houvesse escutado demais os comentários e boatos que surgiam sobre ele, era difícil imaginar um velho coveiro quase incapaz de cavar uma cova rasa ser forte o suficiente para carregar um corpo nas costas durante um frio que tremeria sua artrite.

 

Caminhamos pelas árvores em direção à cabana. A estreita trilha passava em frente ao cemitério, era prudente averiguar se o velho não havia se escondido por lá. Observamos a portaria, o cadeado que prendia a corrente às grades estava aberto, ainda com o molho de chaves. Silenciosamente abrimos a porta de metal que levemente rangeu, o barulho foi logo seguido de um miado em nossas costas. Um gato nos olhava, atento a cada movimento. Estava parado na trilha que acabávamos de seguir, e mesmo assim não havia visto o pequeno animal escuro contrastando com a neve.

 

– Maldito filho da mãe, quase me matou de susto… – disse Castelari.

– Vamos continuar.

 

Havia alguns barulhos mais adiante do cemitério, algo que estava acontecendo nos túmulos mais afastados. Fomos até lá, abaixados e nos esgueirando pelas criptas e estatuas religiosas. A cada passo o som ficava mais aparente. Até que reconhecemos as batidas, era o ruído da pá de Burdock que cavava uma cova, enquanto um homem agonizava amarrado e ainda vivo com o buraco de tiro em seu peito. Ao lado dos dois um caixão vazio e negro aguardava pelo seu dono, com a espingarda .14 no seu interior, retratando tudo como uma terrível cena de horror.

– Mãos para cima, Burdcok. – falei apontando-lhe o rifle.

 

O velho virou-se e me olhou assustado, imediatamente começou a espancar a cabeça da vítima com a pá suja de neve e barro. Não havia outra escolha além de impedi-lo e atirar, o tiro em sua cabeça espalhou um enorme rastro de sangue e cérebro sobre a neve, fazendo seu corpo desabar na cova que havia acabado de cavar.

 

O homem raptado não havia sobrevivido aos violentos golpes. Encontramos em sua carteira as fotos da mulher e dos filhos, sua passagem por aquela estrada havia sido irremediável e sombria. Dias se passaram durante as investigações, e o laudo constatou um registro de túmulos superior às mortes da região, havia mais de quatrocentas criptas não registradas. Burdock supria o ócio da falta de cadáveres enterrando pessoas vivas que ele julgava “colecionáveis” no seu cemitério. Existiam crianças, mulheres e até mesmos idosos do asilo local que por anos se deram por desaparecidos, e que finalmente foram encontrados lá. O ódio do vilarejo logo resultou que incendiassem a cabana do assassino, e imediatamente sua história atraiu curiosos e turistas que procuravam respostas sobre a vida isolada e misteriosa do homem que se comparara ao próprio demônio.

 

Deste então aquele gato negro tem me acompanhado, e observado.

 

 

Sobre Cicero Sena (174 artigos)
Jornalista, criador de conteúdo e estranhamente humano (eu acho).

Deixe um comentário